terça-feira, maio 01, 2007

UM TEXTO TÃO GRANDE COMO O DIA DE HOJE!

Um dia molhado, num céu escuro, numa cidade meia desconhecida, com o Mondego a correr lento do lado de fora do hotel. Chuva na janela, e o Céu que continua escuro.
Um duche quente, um momento de relaxe só interrompido pela empregada que bate à porta para vir fazer a cama e trocar as toalhas.
ESPERA! (Gritei)

Continuo o duche, a água fervente que escorre pela nuca abaixo, e me dá conforto. A porta que bate mais uma vez, o inoportuno serviço de quartos…
ESPERA FO-DA-SSE! (Gritei mais alto)

A porta que se cala, a água quente que deixa de cair, o duche que acaba. Visto-me à pressa com medo que a cama desfeita fuja e quem a vem fazer não a consiga apanhar, com medo que as toalhas húmidas sequem sem que e empregada as venha buscar.
Abro a porta, o Hall vazio, a empregada que não esperou.
FODASSE!!! (Calei)

Deixa. Talvez ela volte e me peça desculpa por ter interrompido o meu duche.
É BALSÂMICO O SUBSERVIENTE PEDIDO DE DESCULPAS DA CLASSE OPERÁRIA.
(A arrogância matinal, faz-me esquecer que também sou operário, e que também peço desculpas subservientes a chefes arrogantes...)

Desligo a música dengosa que escorre de dentro do portátil. Agarro no Lobo Antunes, grosso, meto-o debaixo do braço, visto o casaco pesado por cima de um pólo de manga curta, bato a porta com força, desço no elevador que cheira a novo, olho o espelho que reflecte a tromba mal encarada com que acordei.
VAI SER UM DIA DIFÍCIL!

Largo a chave no balcão e devolvo com custo o bom dia e o sorriso que o engravatado empregado me dirige para desfazer o olhar fulminante com que o desprezo.
BOM DIA! quer o jornal de hoje?
BOM DIA! Dê-me O Público.
O meu sorriso quase que lhe parecerá natural.
Quando eu quero, consigo disfarçar a minha antipatia.

Saio à rua, pingos de chuva escorrem pela cara, e molham os óculos escuros que nem em dias sem Sol eu largo. Ponho o jornal entre a chuva e a minha cara, e avanço fugindo entre as poças de água que se acumulam na calçada branca.

O Mondego escuro, lentíssimo, pede-me que tenha calma, que o telefonema virá.
TAMBÉM ELE SABE QUE PRECISO QUE ME TELEFONES.
(É que os rios têm aquele sexto sentido que só os rios... e as mulheres têm)

Entro no café, já molhado, peço dois folhados, uma água das pedras um café curto e um pastel de Tentúgal que vi na montra.
O Público embebeu já um litro de água, e deito-o no lixo.

Abro o Lobo Antunes e mergulho na história que me viciou:
“… -Pai/ piano a prolongar sozinho uma nota interminável, as gralhas mudas, os corvos mudos, os eucaliptos mudos, o tempo coalhado, a cigarrilha rebolando a fumegar na cinza e no lixo, o meu pai a erguer-se do banco, a jogar a mão ao reposteiro sem lograr apanhá-lo, eu a trotar para ele/ Pai…”

Este gajo escreve bem demais.
FILHO DA PUTA, UM DIA DESTES LÁ VÃO TER DE LHE DAR O NOBEL. Ou o Nobél como eles dizem agora.

Sou interrompido na leitura pela velha que cheira a mijo, se veio sentar na mesa ao lado da minha e não se cala.
“ …Olha que ele depois de casar começou a aviar na minha neta, coitadinha, a minha menina, andei a criá-la com tantos sacrifícios para agora o doido do marido lhe andar a aviar nos cornos sempre que lhe apetece, aquele malandro… A sua interlocutora permanece calada abanando a cabeça e dizendo entre dentes… Coitadinha, coitadinha

Volto a pôr os olhos no livro e não me consigo já concentrar, olho o telefone, que não tocou ainda.
(Tu não me telefonaste ainda...
...nem me has-de telefonar...
NEM SEI PORQUE ESPERO...)

A velha continua a cheirar a mijo,
PORCA!

Fecho o livro, pago a conta, peço factura, ponho o Lobo Antunes grosso debaixo do braço, saio porta fora...
... outra vez a chuva nas trombas, e nos inúteis óculos de Sol, lembro-me que ainda não foram inventados uns “limpa pára-brisas para óculos de sol”.
RIO-ME COM A ESTUPIDEZ DA IDEIA.

O Mondego vai ao meu lado até ao hotel.
Entro, o mesmo empregado que me devolve a chave na mão, e o sorriso agora acompanha um,
BOA TARDE!
Que retribuo automaticamente.
BOA TARDE!
Subo ao quarto, ponho a música a tocar:
A voz do Siñor Compay e do Septeto Habanero, faz entrar no quarto o clima tropical que contrasta com a chuva chata que lá está fora.

Olho a cama ainda desfeita e as toalhas húmidas em cima dela.
O charro mal enrolado pelas mãos que hoje tremem nervosas...
CONFORTA-ME!

Ponho-me a pensar que te preciso para soprares, com uma brisa de ar fresco esta vida que já me cansou.
Acabo por adormecer em cima das toalhas húmidas, que estão em cima da cama desfeita, em cima de um colchão onde já dormiram mil.
Em cima de mim, o Lobo Antunes com as letras desfocadas que ainda tento ler antes de me esquecer por algum tempo que existo.

Acordo com o telefonema de um amigo que me convida para “tomar um copo com a malta” sem saber que me separam deles 200 chuvosos quilómetros.

Levanto-me, é já fim de tarde, o Compay calou-se e o silêncio recorda-me que estou só.

Abro um pacote de bolos, uma coca-cola, peço à recepção um bule com chá, tomo uma Aspirina que rebente com a dor de cabeça que me rebenta,
tomo um duche,
bem quente que me escorre pela nuca tensa,
(Desta vez não há empregada que me incomode)
Limpo-me às toalhas ainda húmidas e frias

FODASSE!
(porque é que eu não abri a porta aquela gaja?)

Deito-me na cama desfeita e molhada, ponho o portátil no colo, escrevo este texto e agora vou adormecer e sonhar que estás aqui, soprando um calorzinho na minha vida.

Boa Noite, amor!